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Andar descalço

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Quanto me recordo, parte das pessoas mais pobres andavam descalças! Na pobreza reinante, os pobres pediam mais para comer do que para vestir. Era uma necessidade premente. Não me recordo de ver os meus colegas pobres da Escola Primária calçados, tanto na rua, no recreio ou na própria sala de aula… 

Os três anos de Guerra Civil de Espanha, logo seguidos dos intermináveis seis anos da Segunda Guerra Mundial, aumentaram as dificuldades que já existiam. A pobreza aumentou.

Na linguagem dos pobres, os que não andavam a pedir à porta eram chamados de “ricos”, tratando-se, mesmo, de famílias que também sentiam a pobreza, mas que a escondiam. Os pobres que andavam na rua vestiam mal e, na maioria, andavam descalços. Chegavam a trocar senhas do racionamento de produtos como o açúcar ou o arroz por dinheiro para comprarem sardinha, naquele tempo muito barata. Era “a comida dos pobres”, que comiam em cima de um “naco de broa”.

Batiam a todas as portas, mesmo daquelas das pessoas que, por igual necessidade, apenas faltava coragem para fazer o mesmo. Eram famílias também com dificuldades que nunca haviam sentido. E não fugiam à designação de “ricos”, como os pedintes chamavam a quem não andava a bater às portas. 

Na minha família, após se esgotarem as insuficientes senhas do racionamento, minha mãe tinha de, constantemente, encontrar imaginação para nos dar de comer. Lembro-me de, em vez do arroz, que acabara depressa, o substituir por grãos de milho retalhados por artificio do moleiro. Valia-lhe a nossa vizinha senhora “Inês do talho”, que, fora do que o racionamento permitia, lhe arranjava uns ossos com carne no interior, para misturar aos grãos de milho. No café com leite do almoço antes de partirmos para a Escola, como o açúcar racionado era escasso, era substituído por rebuçados comprados, em segredo e mais caros, no Café. E a campainha da porta chamava constantemente; pedidos a que não podíamos deixar de atender…meu pai tinha o dinheiro, que os pobres agradeciam.  

Nas aldeias a situação era algo diferente, na medida que produtos semeados ajudavam na falta de produtos essenciais. Havia menos necessidade de recorrer aos que tinham mais. O calçado, quando existia, era poupado para quando tinham de ir à vila de Arcos de Valdevez.

Uma lei publicada no início dos anos trinta, proibiu andar descalço na rua, impondo a intervenção da autoridade, que podia multar em caso de recusa. Andar descalço, inicialmente proibido em Lisboa foi, depois e com dificuldade, exigido nos locais mais afastados da capital. A Arcos de Valdevez a proibição chegou só em 1942, quando eu ainda lá vivia.  

No meio de todo o pretexto pela nova lei, que não foi nada fácil estabelecer, assisti a um ato com humor que não posso deixar de relatar. O Rui Bivar, filho do doutor Artur Bivar, pessoa de natural humor, apareceu descalço no largo da Lapa e foi interpelado pelo velho polícia Amorim para o multar; recusou-se sob o pretexto de que não estava a desrespeitar a lei, que dizia que só era possível andar descalço junto da água (dos rios e das praias, como omitiu ao velho polícia), exibindo a bacia que trazia com água;  o senhor Amorim, demostrando desconhecimento da Lei  que recebera para impor, pediu desculpa e, intrigado, foi pensando:  para que serviria a lei, então? O polícia Amorim era muito popular e parece-me que, também, arcuense.  Foi uma brincadeira ocorrida em frente à Farmácia da Lapa, onde casualmente estava presente, e que o dono da mesma várias vezes relembrava.

Hoje tudo mudou; já ninguém anda descalço por necessidade. Somente por capricho de alguma juventude.

Rui Sampaio

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