O Instituto Nacional de Estatística estimou que, no final do ano de 2023, residiriam em Portugal 10.639.726 pessoas e apresentou resultados preliminares de 31,6 milhões de hóspedes turísticos em 2024, perfazendo 80,3 milhões de dormidas. Ou seja, em média, cada residente velou pelo aconchego de 7,5 noites de sono cobradas a turistas. No concelho dos Arcos, onde residem à volta de 20,7 mil pessoas, verificou-se também a cifra muito festejada de 106.201 dormidas turísticas no mesmo ano de 2024. A ter como certas estas estimativas, vale dizer ter cada arcoense velado por cerca de 5 noites de sono cobradas a turistas, feito que representa um acréscimo de 350% em 10 anos… É obra! E é importante que fique bem claro que, apesar dos problemas que levanta o seu peso na economia e do arrazoado que abaixo fica escrito, o turismo tem vindo a contribuir de “forma significativa para a criação de emprego” e tem atraído “investimento externo (em particular no sector do imobiliário), reflectindo-se na recuperação do património arquitectónico”. Posto isto, atente-se no rural. Aí, com tão espetacular desempenho, o turismo continua a ser acarinhado como anafada galinha de ovos de ouro. São décadas de imaginativas modalidades de turismo nos programas e medidas do chamado Desenvolvimento Rural. Engalanaram-se Solares e Casas Grandes à moda de século XVIII, já não com o ouro e os proventos do açúcar do Brasil a transbordar no Porto de Viana à chegada das frotas dos seus mareantes, mas com a Cornucópia de Bruxelas a despejar euros sem necessidade de correr riscos de navegação. Aqui, o turista pode encontrar frontarias ostentando brasão de armas, interiores com paredes guarnecidas de tapeçarias e retratos de avós, móveis que se vergam ao peso das pratas e, com sorte, a presença de um fantasma de fidalgo ou de brasileiro torna viagem. Recriaram-se em simultâneo – ou foram metidos em conserva – com a ajuda da mesma Cornucópia de Bruxelas, ambientes de “caráter vincadamente rural” entendidos “como as áreas com ligação tradicional e significativa à agricultura ou ambiente e paisagem”, com alojamentos “à escala rural do ponto de vista da dimensão e das características arquitetónicas e dos materiais construtivos típicos da região”, que não viessem a ser “instrumento de urbanização” e que estivessem ligados “às estruturas sociais ditas tradicionais”. Recomendou-se ainda um “acolhimento personalizado e de acordo com a tradição de bem receber da comunidade em que se insere”. Aqui o turista, vindo do bulício da cidade, sente-se transportado à paz da mítica pobreza honrada e limpa de um imaginado quotidiano agrícola, primitivo e rústico, que vale como outra maneira de imaginar o rural.
Procuraram-se ainda raízes do rural em feiras e torneios medievais, no folclore reinventado, na gastronomia e no património. Tudo feito para encher olho e barriga, enquanto se esvazia o bolso, da turba de turistas gulosos, ignorantes e embasbacados com tanta maravilha.
Se perguntam se está bem ou está mal a resposta só pode ser que está tal e qual, pois tendo a agricultura dado lugar ao agro-negócio, e os usos e costumes cedido à globalização, já ninguém sabe, nem pode saber, que coisa é o rural. Dizer de alguém que “é imprevisível” e que dá “muito trabalho”, “por ser do meio rural”, o que o torna “curioso e difícil de entender”, é o mesmo que dizer que lhe “falta mundo”. É por isso que artistas para não correrem o risco de serem vistos como rurais difíceis de entender, se afirmaram com produção aparatosa de arte urbana para dar mundo às gentes e atrair ainda mais turistas à vila dos Arcos, a caminhar agora, por uma pulsão incontrolável dos seus residentes, para um quotidiano urbano.
Rural, urbano, religioso, termal ou o que mais se possa inventar a grande vulnerabilidade da sobreespecialização no turismo face a acontecimentos imprevistos e a desastres naturais ficou patente durante a pandemia de Covid e continua a ser revelada constantemente com a ocorrência por todo o mundo de grandes incêndios, terramotos, guerras e acções terroristas, mas nada é suficiente para arrefecer o entusiasmo acrítico reinante entre a maioria dos decisores de políticas públicas, tanto nacionais como locais.
Não faltam alertas sobre o risco de o turismo “canibalizar” a economia, condicionando a “competitividade de outros sectores produtivos pela pressão sobre preços da habitação, infraestruturas, serviços colectivos e ambiente”.
Não faltam também notícias de reacções populares ao excesso de turismo, não só nas grandes metrópoles mais afectadas como, por exemplo Veneza, Roma, Amesterdão ou Barcelona e, por cá, Lisboa e o Porto – onde a questão crescente do aumento das rendas e dos preços das casas tornou a compra de habitação e o arrendamento quase impossível –, mas também em aglomerados tidos como rurais se têm verificado iguais reacções adversas. A ilha grega de Santorini, por exemplo, limita o número de turistas que chegam de cruzeiros para preservar a sua infraestrutura e a qualidade de vida e na pequena vila de Hallstatt, na Áustria, património da UNESCO que recebe milhares de visitantes diariamente, os moradores locais fizeram um bloqueio no túnel de acesso principal. Insólita é a notícia sobre o turismo excessivo ao pico do Evereste. São imagens mostrando filas de centenas de candidatos a alpinistas a quererem chegar ao teto do mundo. No percurso passam por cadáveres de alguns que por lá vão ficando e por toneladas de botijas de oxigénio usadas, tendas, cartuchos de gás, plástico e fezes humanas deixadas pelas filas de visitantes. O mau comportamento dos turistas, como o revelado recentemente por um autarca do Algarve, também tem sido um problema levando “a que algumas cidades lançassem ‘campanhas de marketing’, que visam desencorajar a visita de determinados turistas”.
São tudo sintomas que apontam para a previsível morte da galinha dos ovos de ouro, mas com a liberdade de mercado de um capitalismo à solta poderá acontecer que, com a galinha engordada por Bruxelas, se faça uma cabidela servida ao turista como sendo de frango pica no chão.
JL