As buscas em dicionários da nuvem digital esclarecem que se desconversa quando se muda de assunto de forma intencional para evitar responder a uma pergunta ou continuar uma conversa específica. Esclarecem ainda as ditas buscas que desconversar pode ser uma tática para desviar a atenção ou evitar um assunto potencialmente desconfortável, controverso ou indesejável. Em português do Brasil a desconversa aparece também como uma forma de “escapismo” verbal, o que não está mal apanhado.
Há desconversas que desaguam tragicamente em violência e diz a sabedoria popular que há quem, deliberadamente, confunda alhos com bugalhos, como acontece em discussões sobre o jogo da bola e, cada vez mais, em debates parlamentares. Há tudo isto, mas há também a possibilidade de tentar, com desconversa sonsa e bem ensaiada, o desarmadilhar de noites mal dormidas ou a azia de digestões difíceis de um interlocutor maldisposto.
No País da Transição Digital a desconversa parece um sonho mau, mas não é, é um tempo presente a ensaiar as desconversas do futuro. Normalizam-se, para tanto, ambientes em que vão sendo abolidos interlocutores encarnados em seres vivos, sejam eles de boa ou de má catadura, feios, bonitos, ou nem por isso, simpáticos, ou antipáticos, dispostos a perceber um problema ou apostados em complicá-lo com o poder absurdo e despótico da burocracia, só pelo gosto de dizer não. Sendo pessoas, existe sempre a possibilidade de ensaiar um toque para certificação de existência real estendendo, por exemplo, a mão em gesto de cortesia de um cumprimento.
Acontece agora ao cidadão desprotegido poder cair, quando menos espera, no poço da transição digital. De entre os múltiplos exemplos possíveis é suficientemente esclarecedor o da ocorrência de uma anomalia na emissão da televisão por cabo. Liga-se por telefone para o número das avarias fornecido pela operadora e uma voz feminina, não encarnada numa pessoa, dá as boas-vindas, acrescentando que a (des)conversa será gravada. Se recusar a gravação é de imediato encaminhado para o túnel das mensagens electrónicas. Aceite a gravação ouve-se for english presse nine, se não pressionar o dito nine ouve a mesma voz digital anunciar que não precisa de usar o teclado basta falar. Começa então a desconversa: desligue a box; desligue o router; conte até três e volte a ligar; veja se os cabos estão bem ligados. Normalmente a avaria não se deixa convencer, mas é possível usar a desconversa para conseguir falar com um ser humano, basta dar respostas absurdas. Aí a voz digital declara impassível: não estou a entender vou passar a chamada para um operador. E é então que desta desconversa brota o entendimento. A generalidade dos ditos operadores tem a arte de conversa bem orientada e o problema acaba por ser resolvido. Terminado o diálogo o salvador pergunta se pode ajudar em mais alguma coisa e avisa que se segue uma avaliação do serviço prestado. A dita avaliação só conta positivamente para a carreira do técnico salvador se, na notação de zero a dez, for dada a notação máxima em todas as questões. Acontece que parte dessas questões diz respeito ao grau de satisfação com as condições em que o serviço foi prestado, portanto se houver impulso de manifestar justo desagrado por se ter estado submetido ao absurdo da desconversa inicial com uma voz sem dono, acaba por não se conseguir premiar o humano. Questionando a voz humana sobre esta necessidade de fazer o pleno de notação máxima para a avaliação reverter em seu favor, já houve quem tenha ouvido, em tom de desconversa: não posso responder a essa pergunta, mas durante o tempo que mantivemos a nossa conversa o senhor pareceu-me uma pessoa inteligente! E desta desconversa brota o entendimento.
Também pode acontecer no contacto digital com um serviço público estar escrito por baixo de uma imagem feminina: Olá o meu nome é Sara e sou a assistente virtual sendo um robot apresento os assuntos a que posso dar resposta. Apresentados diligentemente os assuntos vai-se avançando de uma posição para a seguinte e ao fim de inúmeros passos atinge-se a porta de saída sem a solução do problema e é justo desabafar: não resolvem problemas, mas estão muito bem organizados.
Há inúmeras possibilidades de desconversa com a brigada da transição digital. As grandes superfícies, e mesmo os supermercados que não são muito grandes, apostaram em pôr o cliente ao seu serviço, dispensando o encargo do contrato de trabalho. Para o efeito colocam-se máquinas de pagamento automático. Normalmente estas máquinas não falam, desconversam por escrito e se a desconversa for bem orientada no sentido do boicote, pode haver a sorte de surgir um humano sorridente a declarar: por enquanto ainda fazem falta as pessoas!
Contudo o apogeu da desconversa ocorreu no parlamento, entre humanos, em espetáculo de canal aberto e a cores, numa encenação de Alice no País das Maravilhas. No dito País as desconversas começam com a queda de Alice num poço até às profundezas da toca do Coelho Branco albardado de colete e de relógio de bolso em punho. Depois, em desconversa com a Lagarta Azul, Alice, que esteve sempre a mudar de tamanho, lamenta-se da sua perda da habilidade para recitar poemas, tem uma desconversa com o Sapo Lacaio que a deixa perplexa e o Gato de Cheshire informa-a sobre uma loucura colectiva. Segue-se um chá louco com o Chapeleiro Maluco, a Lebre de Março e o Arganaz. Antes de terminar o pesadelo, o Valete de Copas é levado a julgamento, acusado de roubar as tortas da sua Rainha, a qual decreta: cortem-lhe a cabeça. Alice acorda e o governo cai!
JL