“Metade da população escolar atual vai ter cancro no futuro, mas o número de pessoas a morrer por causa desta doença está a diminuir todos os anos”
“Vamos tratar o cancro por tu” foi um dos pontos altos do Alto Minho Science Fest. Manuel Sobrinho Simões (Prémio Pessoa 2002, entre outras condecorações), médico especialista em diagnóstico e investigação em cancro, deu uma autêntica aula de medicina para desmistificar e descomplicar o tema em causa para centenas de alunos que quase lotaram o palco AltoMinho.
Fundador há 36 anos do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), hoje uma referência mundial na investigação de cancro, Manuel Sobrinho Simões mantém vivo o interesse em investigar as células e a vida das doenças, admitindo “ter muito medo do cancro” que estuda há décadas e sobre o qual reflete com a tranquilidade (e a sabedoria) de quem trata do assunto como se fosse ele mesmo um ser.
Reconhecendo “a importância da linguagem” para a “compreensão” do fenómeno – não há “um” cancro, “há muitos tipos de cancro, desde formas muito agressivas (muito malignas) até formas tão pouco agressivas que são quase benignas” –, Sobrinho Simões alertou que, “da atual geração de alunos portugueses, um em cada dois vai ter cancro no futuro, só que, felizmente, a doença mata cada vez menos: todos os anos, aumentam os casos de cancro em Portugal e em toda a Europa civilizada, mas o número de pessoas a morrer por causa do cancro está a diminuir de ano para ano. Isto significa que estamos a trabalhar cada vez melhor o cancro”, defendeu o ilustre convidado.
O renomado cientista e investigador do Porto mostrou inquietação pelos efeitos nocivos que decorrem do cruzamento da “cultura” com a “civilização”, por ambas “estarem a contribuir para um estilo de vida (álcool, tabaco e obesidade) pernicioso”. Por isso, os investigadores em ciências médicas, “além da formação em muitos módulos das ciências da vida e da informação, “devem combinar competências nas ciências sociais e humanas”.
Para lá das publicações e citações em revistas de nomeada, a contribuição de Manuel Sobrinho Simões estende-se, ainda e sobretudo, à formação avançada de largas centenas de médicos, técnicos e jovens cientistas. “A interação com o sistema hospitalar tem sido muito boa e permitiu o reconhecimento do consórcio Ipatimup/IPO-Porto como o primeiro Comprehensive Cancer Center português”, lembrou ao NA o médico e investigador de 77 anos.
Considerado “o patologista mais influente do mundo” pela revista The Pathologist, Manuel Sobrinho Simões ressaltou a “facilidade exagerada”, tipicamente portuguesa, para os queixumes e para as “ideias empoladas sobre doenças”, um fenómeno que se liga ao “mal-estar social” e à “fragilidade emocional das pessoas”, isto quando “os casos verdadeiros de cancro, na sua maioria, já são tratados ou controlados”.
“Fomos pioneiros no uso de tecnologia sustentável há 17 anos”
Numa área de conhecimento distinta, a cientista Elvira Fortunato, especialista em microeletrónica e optoeletrónica, inovou em 2008 ao conceber um transístor de papel tendo por base “materiais (óxidos semicondutores) e processos sustentáveis”, um avanço – com “patentes” – que emparceirou a empresa sul-coreana Samsung, para a qual a equipa da investigadora de Alcanena fez um trabalho “na área da eletrónica transparente”.
“Utilizámos celulose, base do papel, como material de eletrónica, para criar o primeiro transístor de papel. Fomos pioneiros e provámos que é possível usar materiais que podem ser reciclados e que têm uma origem renovável, fazendo eletrónica flexível e que pode ir para o Espaço”, frisou a professora catedrática.
“Podemos dizer que há um bocadinho de Portugal em toda a tecnologia que é usada em telemóveis, computadores e televisores. E tudo ligado à área da sustentabilidade”, congratulou-se a ex-ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior entre 2022 e 2024, que foi distinguida pela Comissão Europeia com o Prémio ‘Impacto Horizonte 2020’, pela “criação do primeiro ecrã transparente com materiais ecossustentáveis”.
Entusiástica da “tecnologia sustentável, amiga do ambiente e de baixa temperatura”, Elvira Fortunato é não só a precursora mundial da eletrónica de papel em transístores como também o é em baterias, memórias, ecrãs, antenas e células solares.
A.F.B.
Cinco perguntas a Manuel Sobrinho Simões
“A saúde é algo extraordinário, mas é a doença que dá votos e dinheiro”
- Na esteira do que defendia Eça de Queiroz no século XIX, em que medida continua a ser válida a ideia de que “a ocupação geral do povo português é estar doente”?
Completamente atual, porque estar doente é o que dá votos e dinheiro! A saúde, que é algo extraordinário, porque é bem-estar, não dá nem votos nem dinheiro. É um paradoxo!
- Logo, e parafraseando Afonso da Maia (personagem de Os Maias), “o maior serviço patriótico é saber curar”?
Está claro, o avô [Afonso da Maia] bem disse ao neto Carlos para seguir Medicina… [risos]
- O nosso país tem o povo mais doente ou o mais queixoso da Europa?
“Doente” é uma palavra perigosa, porque na doença há aspetos que são mesmo orgânicos e, depois, há outras situações que se prendem com a solidão ou a insegurança – não quer dizer que a pessoa não sofra… Hoje em dia, temos mais problemas de comportamento, as chamadas ‘perceções’, e menos doenças orgânicas. Estou convencido de que, progressivamente, vamos ter cada vez mais capacidade de tratar doenças verdadeiras. Futuramente, vai haver cada vez mais casos de cancro, mas o número de pessoas que vai morrer por causa do cancro vai baixar.
- Como é que vê o problema emergente do sobrediagnóstico?
Durante muito tempo, fazíamos diagnósticos demasiado tardios. Agora, com as ferramentas de que dispomos – toda a gente faz TAC! –, é muito raro que os médicos não façam diagnósticos mais cedo do que tarde. Por via disso, há o fenómeno do sobrediagnóstico e, por consequência, do sobretratamento.
- Qual o papel da Inteligência Especial (IA) no diagnóstico e tratamento do cancro?
A IA ajuda imenso, dá um apoio brutal a tudo, começando logo no diagnóstico. Estamos a usar a IA no cancro da próstata e no cancro da mama com muito sucesso. Apesar de a IA ser uma ferramenta muito útil, o meu receio é que os alunos de Medicina de agora já não aprendam segundo o ensino clássico: os meus médicos internos aprendem com a IA. E se a máquina alucina? Eu que sou um velhinho não me deixo enganar, mas os meus [médicos] internos não colocam reservas às instruções da IA. Por isso, devemos ter alguma cautela, é fundamental considerar o máximo de dados possível e ter em conta a genómica.