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“A maior riqueza de um povo é a sua saúde” (Amílcar Cabral) Até ao fim: A faina humanitária do meu Pai, Manuel Pimenta, na sua terra amada

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Estar vivo na Guiné-Bissau é muito arriscado” – dizia o meu Pai, quando regressava. Mas nada o demovia de lá ir. Nada, nem ninguém. Como se pode acorrentar um homem que ama uma terra mais do que a si próprio? Sabia bem os riscos que corria cada vez que pisava aquele dócil país de terra barrenta e quente, dos perigos que espreitavam a cada esquina, desde a malária até outras doenças infeciosas que lhe podiam ceifar a vida. 

“Aqui, 99% dos casos de malária são por Plasmodium falciparum […]”, dizia aos mais incautos e desprevenidos voluntários que se cruzavam com ele lá no Hospital de Bôr, “[…] é preciso ter cuidado, principalmente por causa da malária cerebral […]” e continuava tranquilamente o seu caminho até à banca da mamé Inê comprar bananas. Comprar e marralhar, porque elas nunca tinham troco para dar ao nosso Pimenta. 

Como ele era feliz com as simplicidades da vida! Quer fosse a comer mancarra acompanhada por uma mini geladinha, carinhosamente apelidada de anti-palúdico pelo nosso Zé Bentinho, quer a abrir estoicamente as resistentes ostras lenhosas em Quinhamel, com a típica faca de bico curto e largo na mão, enquanto discutia os projetos humanitários em curso, com o Prof. Zé Luís. 

A felicidade estava ali, nos momentos de partilha, num fim de tarde em Cachéu, numa vida que se resgatou, numa criança que se tratou, num bebé que se apadrinhou, numa mãe que se amparou, numa grávida que se salvou. Num país com uma das piores taxas de mortalidade materno-infantil do mundo, cada vida que se arranca à morte, é uma vitória contra a adversidade, contra as probabilidades, contra o destino implacável. Logo, tem de ser festejada. 

Na Guiné, festeja-se muito. Como eu admiro este povo! Em vez de chorar pelo que não tem ou pelo fácil que é morrer, escolhem sorrir e celebrar a vida. Agradecem o simples facto de estarem vivos, de terem sobrevivido a mais um dia, do bebé ter sobrevivido ao primeiro mês (o mais arriscado), dos jovens terem ultrapassado a idade de Cristo (a partir daqui, é sempre lucro), de não terem nenhuma maleita ou febre terçã, de terem bianda (do crioulo da Guiné-Bissau, “comida”) para dar aos filhos. Como é fácil ser feliz quando se vive o presente com gratidão. Que bonito é o aqui e o agora. Aprendi o verdadeiro significado de djumbai (do crioulo, “socializar com os amigos”) e a valorizar o tempo de qualidade, em vez de buscar incansavelmente a perfeição em cada tarefa. Foi neste contexto que compreendi melhor a passagem bíblica sobre Maria e Marta e o que realmente importa na vida. Que grande lição! 

E de onde surgiu este grande amor do meu Pai por esta terra abençoada? (Amor esse que, tal como uma boa doença hereditária, já passou para as gerações seguintes.) 

Foi durante o serviço militar, nos tempos da guerra colonial, que o meu pai se apaixonou profundamente por este país. Foram dois anos de trabalho intenso no hospital militar, que lhe deixaram marcas indeléveis e um encantamento pelo seu sofrido povo. No final da comissão, regressou ao seu país, decidido a cumprir o seu dever de bom filho da terra, dedicando-se de alma e coração, ao laboratório de análises clínicas e à farmácia comunitária, cuidando da saúde das suas gentes, dos seus conterrâneos, com a mais avançada tecnologia e excelência. Quarenta anos depois, como nas grandes histórias de amor, o sentimento falou mais alto e regressou finalmente à sua terra amada, decidido a construir um futuro melhor para aqueles que mais precisavam. 

Quando lá chegou, nunca mais parou. Começou por ajudar a financiar a construção de uma maternidade em Cachéu, juntamente com o Rotary Club de Viana do Castelo e a Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau (ACGB) e posteriormente financiar a construção da Casa das Mães. Desde 2012, que não morre nenhuma mãe ou bebé em Cachéu. É a maior prova de amor que se pode dar a um povo: salvar a vida das mulheres e dos seus filhos. 

Verificou que a capital, Bissau, necessitava de um laboratório de análises clínicas equipado com aparelhos robustos, de tecnologia simples e fácil manutenção, capazes de fornecer resultados fiáveis, a preços acessíveis e com elevados níveis de qualidade, ao alcance de toda a população. Era crucial fornecer uma resposta imediata aos graves problemas de saúde que assolavam os guineenses, como os diferentes tipos de anemia, a malária, a infeção por VIH, entre outras doenças infeciosas endémicas no país. Decidiu então equipar um laboratório, o LaBor, e doá-lo ao Hospital Pediátrico de Bôr. Até hoje, este laboratório é considerado uma referência na Guiné-Bissau. Para promover o ensino da Medicina Laboratorial, fundou o Instituto Dom Settimio e apoiou sempre as nossas missões de formação do Projeto Hemato Pa Bô

Sempre que observava um problema, procurava uma solução. Ainda esteve presente no lançamento da primeira pedra do futuro Centro Escolar Alexander Illing em Cachéu, projeto conjunto da ACGB e do Rotary Club de Viana do Castelo, que tanto o orgulhava porque considerava importante investir na educação das crianças, desde o berço. Quis o destino que já não possa estar presente na sua inauguração.

A sua última viagem foi em maio deste ano. Estava mais fraco e debilitado do que antes, mas apaixonado como sempre, cheio de ideias, firme e decidido, como um soldado. 

Afinal ia para mais uma faina humanitária, dar conforto e dignidade a um povo que também considerava como seu. Cumpriu o seu dever até à última. Sabemos agora que a dor que sentiu lá, foi provocada pela fratura patológica de duas costelas, devido a metástases ósseas. Não sabia que estava doente. Muito doente. Ninguém sabia. Talvez tenha sido melhor assim. Pôde despedir-se condignamente da sua terra amada e do grande amor da sua vida, o povo da Guiné-Bissau. 

A Guiné-Bissau chora o Homem que a amou. Que tanto a amou! 

Nós também.

Pimenta ka muri (do crioulo, “O Pimenta não morreu”), dizem. 

 

Manuela Pimenta 

Farmacêutica Humanitária

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