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“Como era dantes…”

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À minha cabeça continuam a chegar recordações do tempo em que, jovem, vivi nos Arcos, procurando deixar uma ideia de como era dantes.   

Em casa de meus pais, quando para lá mudámos (1937), não havia água encanada; era preciso ir buscá-la, com um cântaro, a uma das fontes mais perto de casa. Embora vivêssemos ao lado de uma fonte, as empregadas iam encher o cântaro mais longe, julgo que por uma questão de qualidade. 

No verão, era frequente, em jeito de passeio, caminhar até à fonte de Salzedas, levando um recipiente em barro para encher com a água que se considerava a mais pura e fresca. Ficava a mais de quinhentos metros da última casa, a do senhor Brito, que vendia agulhas para as máquinas de costura. Hoje, parece que essa fonte terá sido absorvida pelo prolongamento das habitações entretanto edificadas.

Não existiam lojas de roupa feita. Os homens compravam um lote de fazenda numa das lojas especializadas, para depois o levarem a um alfaiate, que tirava as medidas, recortava a fazenda e executava duas provas antes da obra acabada. A viver no Porto, autónomo, tive de fazer alguns fatos e comprar algumas gravatas, satisfazendo a apresentação necessária para assistir às aulas e para trabalhar.

Relativamente às senhoras era também necessário comprar o tecido para o vestido ser executado por uma costureira ou uma modista, conforme o caso.  As modistas serviam as clientes de condição económica/social mais elevada e as costureiras eram utilizadas para roupas mais acessíveis. Em algumas casas a costureira trabalhava todo o dia para fazer as roupas das crianças e também reparos de ordem geral.  Não existia a alternativa de pôr de parte o que era reparável, porque comprar de novo ficava mais caro. 

Os sapatos eram caros, justificando a sua recuperação quando a sola estava a necessitar de ser substituída ou de reparação. Para a maioria da infância masculina a solução mais adotada era a de encomendar, num sapateiro, botas de couro e sola em pneu. Era a solução que mais resistia aos jogos de futebol. Eram feitas, também, botas em cabedal, mas destinadas a uso mais adequado. Não havia sapatilhas; só alpercatas de qualidade bastante inferior às de hoje. Eram utilizadas por gente de menos posses. 

Roupas que constituíssem novidade chegadas mais tarde aos Arcos eram adquiridas na cidade de Braga, local mais a par e com maior capacidade para o abastecimento do que aparecia de novo. Lembro-me, por exemplo, das gabardinas designadas por “trincheiras”, que só chegaram aos Arcos quando já eram usuais em Braga e no Porto.

Praticamente quase não existiam automóveis de utilização pessoal. Havia no Largo da Lapa dois táxis e um Citroën “arrastadeira” na oficina dos Ferreira, em frente à garagem do Salvador. Carros particulares, recordo um Rolls-Royce pertencente a um inglês excêntrico que vivia num palacete em Jolda; e um Renault Mini do dono da ourivesaria Pires, no Campo. Depois, havia os camiões do Moreno para transporte de mercadorias. Para transporte de passageiros, existia uma “carreira” do Salvador ligando Arcos de Valdevez a Braga e outra da empresa Magalhães, para deslocação ao Porto. Quer para Braga quer para o Porto, o transporte era realizado uma vez por dia, saindo a camioneta de manhã cedo e regressando ao fim da tarde. 

Só havia um hotel, o Hotel Ribeira, que então era classificado com três estrelas.  Do outro lado da ponte ficava a Pensão Emília, muito bem dirigida pela própria proprietária, a Emilinha. De resto, havia algumas tascas, a mais famosa das quais era a do “Juca”.

Nas escolas, os sexos eram separados e vigiados, só no ensino superior não existia distinção, mas era um nível de ensino frequentado por poucas mulheres. Lembro-me de fazer parte de uma turma onde só havia duas.

Nos bailes organizados no saudoso velho Cinema, com entrada seletiva, as meninas eram sempre acompanhadas por familiares que, dos camarotes, apreciavam os comportamentos. Constituíam aquilo a que chamávamos de “arame farpado”. 

Lembro os Cafés Chave de Ouro e Café Arcoense, ambos no Largo da Lapa, o primeiro com clientela mais qualificada e o segundo mais generalizada. E recordo-me também do Café da Valeta, no fim da rua do mesmo nome, frequentado por gentes do sítio.

No aspeto dos costumes, uma mulher não podia entrar sozinha no Café; tinha de ir acompanhada por um homem; se entrava só, era olhada como suspeita de libertinagem. Assim como à noite, elas não deviam sair sem companhia. 

No aspeto socioeconómico, um pobre era um pobre, que nada tinha senão a esmola dos mais generosos; hoje, um pobre corresponde a um remediado de então, com rendimento insuficiente para viver como o seu próximo. 

Socialmente, uma estratificação proveniente dos bens ou da posição profissional, escalonava as pessoas em grupos de vivência no dia-a-dia.   

Ainda tenho na cabeça muitas recordações “como era dantes”. Sinto saudades, mas agradecido pelo privilégio de ainda conhecer como é hoje. Agora, só desejo que as gerações que cá deixo vivam um “depois” com melhores realidades neste mundo com tão incerta globalização…

Rui Sampaio

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