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Quarta-feira, Dezembro 11, 2024

A perdida

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A paixão pelas línguas, pelo estrangeiro, pelo diferente, pelo avant-garde, pela busca, descoberta, livros, atlas, agora a Internet onde tudo se concentra, as línguas, os jornais, as notícias, as modas, onde a curiosidade se satisfaz de imediato, o excesso de informação, o salto de descoberta em descoberta, o esquecimento da procura inicial no meio de tantas opções oferecidas, aliciantes, por vezes dececionantes, tudo mudou, não se pode voltar atrás, como dizia a ex-comissária europeia, a antiga jornalista luxemburguesa, Viviane Reding, do jornal Luxemburger Wort. A partir de 2004, foi encarregue da Sociedade da Informação e dos Média, e proferia no seu discurso a convite da Associação Europeia de Jornais e Revistas, que temos de aceitar e seguir em frente, separando o trigo do joio, superando os escolhos e as fake news, o supérfluo, não cair em rasteiras baixas, mas é impossível suster o progresso; a indústria do papel, estes sim, preocupados com a falta de procura da imprensa escrita. Isto passou-se há quase 20 anos, parece que foi ontem, mas passaram 20 anos. Tinha feito questão de tirar uma fotografia ao seu lado, a mulher poderosa e a rapariga ávida a defender um mundo que a iria engolir e esquecer-se desta luta sem vencedores, pois o destino estava lançado, a vitória da internet.

A rapariga, rodeada de livros, esquece-se de os ler, mergulhada em leituras de consumo rápido como bolos de chocolate envenenados de açúcar.

Desceu a rua, o cão pela trela, um Jack Russel nervoso e espevitado, que lhe fazia lembrar os rapazes baixos e feios (se se pode dizer assim), que se metem com todas as raparigas e se armam em interessantes, pois é a única hipótese que têm num mundo competitivo de testosterona barata. Se gostava do novo mundo digital? Por vezes, sim, por vezes, não. O Bite (que se lê “baite”) esticava a trela, quase sufocava na coleira, a fazê-la estugar o passo e tropeçar nas pedras soltas da “calçada portuguesa”.  Dirigiu-se ao rio, a intenção era um tranquilo passeio pela margem, ouvindo música, respirar o ar impregnado de maresia, ouvir as gaivotas, esquecer a noite anterior, que a perturbou, dormiu mal e acordou cansada como se tivesse andado 20 quilómetros sem freio.

Cerca das 22 horas, depois de ter estado a salvo no quarto do pequeno hotel, esgueirou-se silenciosamente na expectativa de que ninguém desse pela sua presença. Qual quê, o casal francês “espiritualista” estava de olho e ouvido nela, abriram a porta de rompante e saltaram-lhe ao caminho. Disse um palavrão para si, fez o melhor sorriso e numa voz jovial, e, ainda à defesa, explicou que ia ver no salão a série dinamarquesa que passava na RTP2, um dos poucos prazeres que a televisão lhe proporcionava, já que lhe tinha um ódio figadal. Pois foi apanhada, a francesa “iluminada” vinha com 2 baralhos de cartas na mão, tinha-lhe dito na noite anterior que lhe iria ler as cartas, o que não lhe causou expectativa nenhuma já que não era seguidora de Tarot nem de astrologia, nem bruxaria, nem coisa que se parecesse, e, com o coração mais negro do que a carta mais desgraçada pudesse infligir, contrariando a sua natural descrença, o seu ceticismo inato, teve de escolher uma, e outra, e outra, até mostrar tão pouco entusiasmo que a francesa desistiu. Então, mas é isto?! E a série a passar em silêncio, as paisagens idílicas da praia dinamarquesa, os excelentes atores em sessão de mímica, a conversa da força interior, do amor pelo próximo, da infância que poderia ter sido traumatizante, mas não foi, a promessa de que poderia chorar, ora bolas, palavreado que conhecia de cor, o entusiasmo do companheiro da francesa que tinha sido “salvo” por ela, pela estudiosa charlatã como todas as que conheceu, até ela já tinha “lido a mão” às amigas que faziam fila na praia para ouvirem balelas, não, não lhe façam perder o tempo precioso com inutilidades, a vida é o que é, se a quiserem apimentar vão passear sozinhos ou com um cão emprestado se não o tiverem, ai, espera aí, também se juntou o canadiano, que afinal era argelino, cheio de borbulhas e os dentes a precisarem de um bom aparelho, os minutos a escoarem-se, a cabeça a latejar, e uma vontade enorme de mandar todos à merda. O Bite deu um esticão maior, esbarrou num daqueles pilaretes ao longo da margem, foi de mergulho ao rio, esbracejou em pânico, o Bite ladrava a alertar o afogamento iminente da dona, um “negão” atlético descalçou-se, mergulhou e, energicamente, com uma valente bofetada, calou-a, deixando-a inconsciente, e puxou-a para a margem empedrada, um muro alto, nadando até à escada mais próxima. Fez-lhe respiração boca- a-boca e, entre as lambidelas do assustado Bite e os esforços do seu salvador, abriu os olhos e respirou sofregamente, vomitou a água do esgoto, e abraçou o atual marido, 30 anos mais novo.

 

Lisboa, 10 de setembro de 2024

Maria Paula T. Q. Barros Pinto

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